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Embora mais da metade da população brasileira seja negra (cerca de 54%), a área de Finanças, especialmente nos cargos de liderança, apresenta uma realidade distinta: somente 8% das posições C-Level são ocupadas por negros e negras no país, de acordo com a pesquisa O Perfil do CFO no Brasil 2021, da Assetz em parceria com o Insper. Muitas companhias, por sua vez, vêm implementando iniciativas a fim de ampliar o espaço destes Executivos, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido para que esta realidade seja diferente.

Dentro desse contexto, a legítima igualdade racial nas organizações envolve principalmente uma mudança da mentalidade corporativa como um todo. Uma forma de estimular este processo seria por meio do “letramento racial”, que busca conscientizar Executivos sobre o racismo estrutural no Brasil, expressões preconceituosas que devem ser evitadas no dia a dia, entre outros temas da luta antirracista. Com isso, quanto mais os profissionais discutirem a pauta racial, mais esclarecidos eles serão sobre o assunto e, consequentemente, mais atitudes e pensamentos preconceituosos serão desconstruídos dentro do ambiente de trabalho.

Outra questão a ser levada em consideração é o processo de recrutamento em si, que muitas vezes, inconscientemente, segue padrões de escolha e acaba por corroborar a hegemonia branca em Finanças. Segundo Ton Mendes, Gerente Geral do ID_BR, organização que promove soluções a companhias que procuram diminuir a desigualdade racial, “As pessoas tendem a contratar pessoas parecidas com elas. Se a gente não conhece a nossa história, acabamos reproduzindo.”. Com isso, a preferência por candidatos de certas instituições de ensino ou que tenham tido determinadas experiências, sem que isso seja necessariamente um requisito imprescindível para a vaga, acaba por levar à contratação de Executivos financeiros muito parecidos entre si, em sua maioria indivíduos brancos que puderam frequentar tais instituições e se dedicar ao estudo do inglês por um longo período. Assim, deve-se avaliar de fato quais requisitos são indispensáveis e quais podem ser flexibilizados para que profissionais negros sem as mesmas oportunidades de formação tenham condições reais de competir por uma vaga. Ademais, se deve investir na formação desde a base, estimulando ações afirmativas que realmente garantam o acesso de jovens negros ao mercado de trabalho como, por exemplo, programas de trainee ou de estágio voltados exclusivamente a pessoas negras. Dessa forma, além do incentivo à formação de equipes cada vez mais diversas, a quantidade de negros e negras que se desenvolverão e chegarão a posições de liderança no futuro também tende a ser maior. Trata-se de um plano cujo resultado será visto em médio e longo prazos.

No que diz respeito a essas ações afirmativas, elas também podem e devem ser aplicadas à cultura da empresa. Ouvidorias internas, palestras e equipes focadas em diversidade são fundamentais para o alcance da igualdade racial nas organizações e para a formação de um ambiente de trabalho mais inclusivo para pessoas negras, de forma que elas permaneçam por mais tempo nas companhias e possam ascender na carreira.

Apesar de tais iniciativas demandarem grande investimento de capital e de tempo por parte das corporações, trazem inúmeros benefícios em troca. Empresas que adotam a cultura da diversidade como um todo, inclusive racial, apresentam um aumento efetivo na criatividade organizacional e inovação na forma de pensar estrategicamente – tão necessários na área de Finanças – que, por conseguinte, colaboram para o alcance de resultados financeiros melhores. Em adição a isso, essas empresas ganham visibilidade em termos de marca, elevando o seu valor de mercado e principalmente a credibilidade junto aos seus stakeholders externos por realmente cumprirem o seu papel dentro da sociedade. Como dito por Barack Obama, ex-presidente americano, em uma visita ao Brasil em 2017, “A diversidade é uma fonte de força. Não é caridade. Não é a coisa certa a se fazer. É a coisa inteligente a se fazer.”.

Assim, para compreender melhor a importância de Executivos negros e Executivas negras na área financeira, os desafios que enfrentam e o papel das companhias no alcance da igualdade racial, convidamos três profissionais de Finanças para compartilharem suas perspectivas e vivências em relação ao tema.

Adalberto Almeida

Diretor Financeiro | Knauf Isopor

Carlos Ribeiro

CFO | Tigo Brasil

Elisangela Almeida

CFO | Grupo In Press

De modo geral, quais são os principais benefícios que a área de Finanças pode obter ao adotar a igualdade racial como um de seus principais pilares?

Adalberto Almeida: Eu vejo a igualdade racial inserida no contexto do ESG (Environmental, Social and Governance). Ou seja, não é possível uma empresa ser socialmente responsável se ela ignora, entre outros fatores, a responsabilidade social que possui com o tratamento igualitário para todos os seus colaboradores. E ao falarmos de um país com tamanha desigualdade como o Brasil, a relevância do assunto é ainda maior do que em outras nações.

Carlos Ribeiro: A pluralidade na cultura organizacional por meio de diferentes raças e gêneros dos profissionais, assim como experiências e perspectivas das mais diversas é o maior ativo de uma companhia, pois contribui para torná-la mais preparada para resolver questões do dia a dia, das mais simples às mais complexas, principalmente na área de Tesouraria e Planning.

Outro ponto positivo, não menos importante neste assunto, são as companhias que demonstram nos seus valores a importância da responsabilidade social. Empresas que têm a cultura de igualdade geram impacto positivo e atraem colaboradores mais competitivos e engajados.

Quando falamos de igualdade racial, trata-se de respeito ao próximo, gerando maior valor para as características ímpares que a companhia deve ter.

Elisangela Almeida: A área de Finanças interage com todas as áreas de negócios e de suporte das empresas. Dessa forma, ela é uma grande influenciadora e vetor de transformação nas organizações.

Certa vez, eu ofereci mentoria a uma pessoa da área de Sustentabilidade que disse ter me procurado por eu ser uma Executiva Financeira e que gostaria de aprender a se comunicar melhor com a área de Finanças. Confesso que fiquei preocupada, percebendo que nós financeiros deveríamos aprender a falar a linguagem de ESG e estar atentos a estas novas pautas.

Como não conseguimos resultados diferentes sem mudarmos nossas atitudes, é preciso renovar novos olhares e leituras do ambiente social nas empresas. A fim de atender a este objetivo, trazer pessoas negras para a área financeira é um fator primordial.

Você já sofreu qualquer tipo de preconceito racial ou presenciou alguma falta de respeito com profissionais negros no ambiente de trabalho? Se sim, alguma providência foi tomada?

Adalberto Almeida: Sim, já sofri e já presenciei, mas nunca denunciei. Quando comigo, mudei de empresa ou até mesmo resolvi declinar do processo seletivo do qual estava participando. No entanto, quando com outros, lutei internamente na companhia para que a justiça fosse estabelecida.

Carlos Ribeiro: Sim, muitas vezes ao entrar numa sala de reunião e observar a reação e o olhar decepcionado e desconfiado da pessoa do outro lado da mesa, conduta a qual é causada pelo desconforto de ter que negociar com um negro. Vale ressaltar que esta situação se repete inúmeras vezes.

Mas, a maior ofensa que já recebi na minha vida foi quando eu estava frequentando, como cliente, uma sorveteria no bairro de Moema-São Paulo e fui confundido com um vendedor de rua. Na ocasião, o segurança dirigiu-se a minha pessoa e pediu para eu sair, dizendo que eu “estava importunando os clientes” por vender brinquedos no interior da loja. O mais agravante foi que eu mandei vários e-mails para o SAC da empresa, informando o caso de racismo ocorrido, e não tive nenhum retorno. Somente após minhas publicações em rede social que a companhia entrou em contato comigo. No entanto, este triste caso de preconceito teve um desfecho positivo. Percebendo o descaso da empresa com o ocorrido, a falta de preparo dos funcionários e a fraqueza de boas condutas dentro da companhia no atendimento ao cliente, eu propus um acordo com os acionistas da referida sorveteria. Nesse acordo, eles deveriam contratar uma instituição para dar palestras sobre a diversidade para os seus funcionários e treinar três grupos de vinte pessoas em uma comunidade carente para ter uma profissão ligada à gastronomia.

Elisangela Almeida: Como mulher negra, sofri, sim, preconceito racial disfarçado de assédio sexual. E estes dois são altamente prejudiciais à carreira da mulher negra. Nos dois casos, eu fui e reclamei. No primeiro, eu fui transferida de área e, no segundo, minimizaram a situação, então eu procurei outro trabalho.

Tendo em vista a difícil ascensão de negros (pretos e pardos) a posições C-Level na área financeira, como estes Executivos podem e devem lidar com as dificuldades na rotina de trabalho a fim de construírem perspectivas de carreira a longo prazo?

Adalberto Almeida: Nós Executivos negros que estamos nestas posições, devemos trazer a pauta racial para a discussão e influenciar o Board, a equipe e os pares a fim de que ações de igualdade racial sejam asseguradas. Que em cada decisão sobre contratação, promoção e reconhecimento, a raça e gênero não façam parte do fator decisório.  Eu entendo que, agindo assim, o cenário vai gradualmente se equilibrando, mesmo que este processo leve mais algumas décadas.

Carlos Ribeiro: Devem lidar com perseverança e cabeça erguida, porque irão surgir diversos questionamentos sobre suas capacidades, então ao assumir um desafio, faça sua lição de casa, estude sobre o assunto, mergulhe no conhecimento, esteja preparado para os questionamentos e para surpreender os que estão a sua volta. Com esta atitude, sua ascensão será inevitável.

Há alguns anos, a empresa em que eu trabalhava proporcionou para adolescentes de uma comunidade uma palestra sobre profissões e um testemunho da trajetória profissional de um office-boy que virou partner. Nesta apresentação, fui convidado a falar da minha trajetória profissional. Eu estudei em escola pública, comecei a trabalhar aos 14 anos e percebi que os estudos e o conhecimento estavam atrelados ao meu desenvolvimento profissional. Com meu salário, eu paguei minha faculdade, pós-graduação e mestrado, mas além disso, eu trabalhava por mais horas ao dia do que todos os meus colegas e não recusava um problema/desafio. Pelo contrário, eu o transformava em oportunidade, e assim eu construí a minha carreira de office-boy até partner.

Trabalhem incansavelmente e não parem de estudar, encarem os problemas/desafios como a última oportunidade que vocês terão na sua vida profissional.

Elisangela Almeida: A carreira de Finanças é complexa, requer diferentes competências técnicas e comportamentais. E, para adquirir tudo isso, é necessário muitas vezes investimento financeiro e alta exposição social, o que a maioria de nós não tem. Temos que correr atrás do desenvolvimento de nossas habilidades, mesmo que os desafios, para nós, sejam maiores.

Na sua opinião, qual é o papel das companhias e quais ações elas devem promover para superar os obstáculos em prol da igualdade racial?

Adalberto Almeida: As companhias devem ficar atentas ao ambiente de trabalho, de recrutamento e promoção. Devem analisar, também, o percentual de negros em sua base da pirâmide e quantos deles chegam ao nível C-Level. Não que tenham que promover cotas, mas precisam minimamente analisar se a ausência de negros em posições de liderança, gestão ou direção é por falta de qualidade ou por barreiras preconceituosas dos tomadores de decisões. Para empresas mais corajosas, exemplos como o do processo de trainee do Magazine Luiza são uma ótima inspiração. Mas, entendo que às vezes se posicionar de forma tão assertiva pode trazer holofotes que nem todas as companhias estão dispostas a enfrentar.

Carlos Ribeiro: As empresas têm um papel fundamental nesta transformação, porém elas não enxergam que são racistas ao publicarem suas vagas pedindo, por exemplo, inglês fluente quando naquela atividade não se usa ou raramente se usa o inglês. Até na hora de optar pelo candidato negro (“ele tem um perfil excelente, pensamento crítico, resiliência ….”), escolhem o não negro (“mas, vamos contratar este que tem um bom perfil e estudou em escolas de primeira linha”).

Além disso, as empresas ainda não perceberam que este problema é uma grande oportunidade para investirem um pequeno percentual dos seus lucros em programas de combate à desigualdade, gerando retornos exponenciais no longo prazo.

Conforme dados levantados pela consultoria McKinsey, em um artigo sobre Diversity Matters, as companhias que têm a cultura da diversidade no seu time de C-level têm 14% de probabilidade de gerar maior desempenho quando comparadas com seus concorrentes, e 93% maior chance de gerar um maior resultado financeiro.

Então, no meu ponto de vista, o papel da empresa é separar uma porcentagem dos lucros para investimentos em programas a fim de combater a desigualdade, o que irá gerar valor de pertencimento aos seus Executivos e, assim, acabar com essa desigualdade.

Elisangela Almeida:  Acredito que as empresas podem contribuir para a formação destes profissionais conectando-os a mentores, dando oportunidade de exposição e criando programas de desenvolvimento profissional para Executivos negros.

Como representante da minoria negra que ocupa posições de liderança em Finanças, o que você diria para outros profissionais negros que almejam construir uma carreira bem-sucedida na área financeira e que precisam de uma referência inspiracional como você?

Adalberto Almeida: É muito difícil aconselhar algo que está tão enraizado em nossa sociedade e que eu continuo a sentir os efeitos e limites que são impostos a mim.

Porém, eu diria para priorizar e desenvolver a carreira em empresas que assumam um papel social responsável e que tenham como um dos principais pilares a meritocracia. Uma vez dentro destas companhias, desenvolvam-se acadêmica e profissionalmente, cuidem da imagem, e entreguem 2x mais. Isso fará você ser reconhecido.

Carlos Ribeiro: Eu diria aos profissionais negros que, primeiramente, tenham atitude, e não tenham sentimentos de inferioridade – imputados aos negros ao longo do tempo por toda sociedade não negra.

Dediquem-se ao conhecimento através de livros e estudos, pois sempre há grandes oportunidades de desenvolvimento. Busquem aprendizado assistindo a lives, cursando matérias por EAD e escutando a podcasts. Tudo gera conhecimento e uma maior capacidade intelectual. Este é nosso maior ativo de vida.

Usar, sim, as cotas raciais que proporcionam acessibilidade a universidades de grande prestígio. Tenham em mente que nós negros podemos estudar em escolas públicas, podemos, sim, fazer faculdade pública e até ter acesso a programas de estudos para estudar fora do país. Por que não buscar estas alternativas?

Na minha opinião, nós negros somos ricos em resiliência e perseverança, herdadas pelos nossos antepassados, então por que não alinhar estas qualidades ao conhecimento intelectual?  Certamente, poderemos gerar resultados sobre resultados e promover uma menor desigualdade e, assim, teremos mais oportunidades de ocupar posições Executivas em Finanças.

Elisangela Almeida: Não desista! Seja protagonista e responsável por sua carreira.

Chegar à cadeira número 1 de Finanças é para poucos, então, esteja preparado. Estar preparado é estar pronto para servir com qualidade, respeitando princípios éticos, condutas e mantendo-se sempre atualizado. E de preferência, esteja sempre um passo à frente.