“Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
(Artigo 2º – Declaração Universal dos Direitos Humanos – 10 de dezembro de 1948)
Esta é a segunda vez que escrevo sobre este tema. De lá para cá, aprendi muito com inputs de algumas pessoas que me mostraram perspectivas, ângulos e experiências diferentes daquelas que conhecia. Com isso, mudaram minha forma de pensar e ampliaram minha visão e meus horizontes. A essas pessoas, agradeço muito.
O mundo corporativo está em plena e rápida transformação, ainda que muitas pessoas inseridas nele não percebam. Em vários ambientes aos quais estou exposto, vejo evidências de um novo pensamento sobre liderança bem como seus conceitos e suas práticas. A verdade é que as velhas fórmulas já não funcionam mais. Foi-se o tempo do conceito de que a missão de uma corporação era, primordialmente, criar valor para seus shareholders. Pelo menos, não no novo capitalismo ou na nova governança, que está baseada na criação de valor para os vários stakeholders. Apesar de parecer uma mera questão semântica, à primeira vista, a mudança de duas letrinhas aqui traz uma transformação revolucionária e altera conceitos fundamentais de como nós funcionamos no dia a dia.
Na minha visão, neste novo mundo, a prática da diversidade e da inclusão será a pedra angular sobre a qual as nossas organizações estarão alicerçadas. Afinal, no fundo, estamos falando de justiça, respeito, compaixão e amor. Se trouxermos isso para dentro de nossas casas, nossas equipes e nossas organizações, a verdadeira mudança acontece.
Hoje, muito se fala sobre este tema tão importante e fundamental. E ainda bem! Mas, como tudo que entra na máquina corporativa, vira sistema, processo, indicadores, metas, relatórios circunstanciados. E por aí vai. Isso é bom, por um lado, pois traz uma preocupação com a execução, com os resultados concretos e a perpetuação do conceito. O risco é virar algo automático, sem alma, sem emoção e sem aquela inteligência intuitiva e refinada, ou seja, ter a forma se sobrepondo à essência.
Mas, depois que é tudo dito e feito, quando os holofotes se apagam, e a gente fica sozinho, será que a mudança, de fato, profunda, realmente ocorreu? Ou é mais um movimento “para inglês ver”, expressão que, segundo o filósofo João Ribeiro, nasceu quando as autoridades portuguesas tomavam ações pouco efetivas e superficiais para conter o tráfego de escravos, fingindo ceder às pressões da Coroa Britânica.
Para funcionar de verdade e se criar um legado transformacional, a diversidade deve vir de dentro, do coração. Precisa haver o entendimento de que é a coisa certa a se fazer, e isso deve ser suficiente para nos colocar em movimento. Não o bônus, a premiação em stock options ou a possibilidade de aumento no preço da ação. Vejo, e aqui é só uma opinião de quem vive dentro das empresas, há, praticamente, 35 anos, e liderou gente por quase 28 anos, algumas condições básicas para a diversidade voar e se tornar um traço da nossa personalidade, da nossa identidade corporativa.
• Diversidade precisa ser buscada, conquistada. Sozinha, ela não vem:
– Se não fizermos o briefing para nossos recrutadores com o foco claro de que queremos uma mulher, uma pessoa da cor preta, um representante LGBTQIA+, um 50+ (e eu agradeço 12) ou um membro de outro grupo de minoria, só teremos candidatos homens, jovens, brancos e cristãos para as nossas posições. Acredite, eu já vivi esta situação inúmeras vezes.
– E, para isso, é preciso ter paciência para esperar, pois o processo será – indubitavelmente – mais lento. Não fechará na primeira e, talvez, nem na segunda lista. Haverá pressão para desistir, na empresa e até pelo recrutador. Entretanto, é preciso perseverar. Há muita gente boa por aí que faz parte dos grupos de minoria, e precisamos encontrá-las.
– Será necessário flexibilidade na avaliação dos atributos, porém não no julgamento da qualidade do talento humano. Quando digo atributos, às vezes, nossas listas de requerimentos vão muito além do realmente necessário. Aqui, precisamos ser pragmáticos. Algumas coisas são inegociáveis, no entanto outras podem ser trabalhadas “ao longo do campeonato”. Todavia o talento, o potencial deve de estar lá, até para que estas pessoas tenham a respeitabilidade legítima do grupo, da equipe e dos pares.
• Diversidade precisa ser construída:
– Muito se fala de quotas, indicadores, metas e pouco se faz de prático na construção de um pipeline de liderança que privilegie a diversidade, de forma que isso deixe de ser necessário. Precisamos trabalhar na base de talentos, nas posições de entrada, no desenvolvimento destas pessoas, na gestão da carreira, na retenção e, fundamentalmente, na felicidade delas. Um pipeline diverso ao longo de toda a sua dimensão, inevitavelmente, nos brindará com candidatos diversos, de maneira consistente e perene, e isso é perpétuo.
– A gestão do pipeline precisa compreender ações não só para desenvolver talentos, mas também para evitar a evasão dos talentos diversos. Desde o início da minha carreira, o fenômeno da evasão das mulheres na fase da gerência média é claro. Elas são a maioria no início e evoluem de maneira primorosa. Mas, nos níveis de diretoria, vice-presidência e conselho são, ainda, vasta minoria. Para onde elas vão? Esta é a pergunta que se faz, como se não soubéssemos a resposta. A maternidade tem um efeito importante aqui, afinal, deixar uma criança pequenininha o dia inteiro com uma babá, numa escola ou mesmo com parentes, não é algo trivial para uma mulher, considerando o pensamento corrente de nossa sociedade. Bate o sentimento de culpa, o peso do abandono.
– Uma das pessoas que revisaram a primeira versão deste texto me presenteou com o conceito da parentalidade. Quem disse que determinadas funções precisam ser executadas pela mulher, e não pelo homem? Estas definições têm origens tão antigas que não arrisco a explorá-las aqui. Mas, não são absolutas ou definitivas. Na minha visão, estão erradas. Tão erradas quanto a proibição ao voto feminino, que caiu em 1932, no Brasil, precedido pela Inglaterra, em 1928, e pelos Estados Unidos, em 1920. E, pasmem, na Suíça, esse direito foi conquistado somente em 1971, e não foi nada pacífico: mulheres agredidas, sendo impedidas de chegar às urnas. Enfim, aquele receituário que, infelizmente, conhecemos bem. Lembro de minha avó cantando uma música sobre o sufrágio universal, uma mulher de fibra e coragem.
– Voltando à parentalidade, muitas corporações e países estão igualando o direito à licença parental para ambos, de forma que as funções sejam divididas ou organizadas de acordo com a realidade do casal em particular. Da mesma forma, consideram também os direitos dos casais homoafetivos, já se antecipando à evolução da legislação. Pois, em muitos lugares – Brasil incluído – o casamento entre pessoas do mesmo sexo é sequer, juridicamente, reconhecido. Não precisamos ser integrantes LGBTQIA+ para compreender a injustiça disso. E, ao mesmo tempo, queremos equidade, diversidade em nossas equipes e empresas. É preciso querer de verdade. E, para isso, começa em casa. Fico realmente feliz em ver esse compromisso sendo assumido por corporações vanguardistas e relevantes na economia doméstica e mundial.
– De forma igualmente positiva, tenho visto colegas cheios de energia, vivacidade, criatividade e muita experiência, voltando ao mercado de trabalho, pelas vias de políticas ousadas de atração de talentos dos chamados “50+”. Felizes em transmitir o conhecimento, em trazer sabedoria para o ambiente de trabalho, na mais pura fórmula “ganha-ganha”. As organizações com inteligência estão se mexendo e fazendo diferente. De novo, presente de outro amigo revisor.
• Diversidade precisa ser manifestada e escutada, sem medo:
– Ela só faz sentido pelos traços comportamentais, emocionais e pelas linhas de pensamento que trazem. Quando encaixotamos as pessoas diversas em nossos modelos tradicionais, entregamos belos indicadores, cumprimos nossas metas, porém matamos a diversidade, pois não praticamos a inclusão. Diversidade e inclusão devem andar juntas, sempre. Quando pedimos – não só explicitamente, mas também por meio de ações, piadas, olhares, julgamentos velados – que nossas pessoas diversas deixem sua diversidade na porta de entrada da empresa, cometemos um erro tremendo e deixamos de trazer novos pontos de vistas, novas opiniões, novos desafios e, principalmente, deixamos de aprender e crescer.
– Quando fiz o curso Conselheiros de Administração do IBGC, tomei contato com o seguinte trabalho muito interessante: A professora da Columbia Business School, Katherine W. Ross, publicou um artigo na Scientific American, intitulado How Diversity Makes Us Smarter (Como a Diversidade nos faz mais inteligentes), em que, pelas várias pesquisas, se demonstra a superioridade dos times diversos na solução de problemas e tomada de decisões. Da mesma forma, a diversidade promove criatividade e inovação, e vale para todos os tipos de diversidade. De novo, não é esperança ou teoria, é pesquisa com validade científica. Por outro lado, como se diz nos Estados Unidos: No pain, no gain! (sem dor, sem ganho!). No caso, a dor da diversidade é se abrir e abraçar o novo, as posições divergentes, preparar-se mais para as conversas e para trocas mais profundas. Para isso, voltamos aos conhecidos Essential Skills: é preciso saber escutar, ativamente, ter empatia e inteligência social.
• Precisamos tomar consciência e derrubar nossos vieses:
– Ao longo de tanto tempo, construímos conceitos e estabelecemos práticas que, de uma forma ou de outra, viram verdades, crenças que nos guiam. Sem perceber, os padrões se cristalizam de tal forma, que simplesmente não pensamos mais. Seguimos como as gerações anteriores, que seguiram as gerações que vieram antes. De repente, em nome de tanta coisa ou de qualquer coisa, excluímos tanta gente, tanta inteligência, tanta criatividade.
– No livro Long Walk to Freedom (Longa Caminhada para a Liberdade), Nelson Mandela revela coisas tão absurdas, mas que aconteceram há relativamente pouco tempo atrás, incluindo a proibição, sob o regime do Apartheid, do casamento entre pessoas de raças diferentes. E, para isso, se fazia o Pencil test (Teste do lápis), onde colocava-se um lápis no cabelo da pessoa. Se o lápis permanecesse no lugar, a pessoa era, então, considerada da raça negra (seguindo os conceitos que vigoravam). Em função disso, se determinava onde a pessoa poderia morar, com que poderia se casar, etc. Imaginemos agora, nós, apaixonados por uma pessoa e termos nossa união proibida por uma questão como essa? Absurdo, não? Pois é, como será que se sentem nossos colegas e amigos homoafetivos hoje, em nosso próprio tempo e em nosso próprio país?
Ainda no mesmo livro, Mandela relata, como seu bom humor característico, como ele mesmo se viu vítima do viés racial, quando visitou vários países africanos, antes de ser preso, buscando apoio para luta contra o regime do Apartheid. Era a primeira vez que saía da África do Sul e neste momento, embarcava em um voo da Ethiopian Airlines, rumo a Addis Ababa. Em suas próprias palavras: “Enquanto embarcava no avião, percebi que o piloto era preto. Eu jamais tinha visto um piloto preto e, quando vi, precisei reprimir meu pânico. Como um homem preto pode pilotar um avião? Mas, no momento seguinte reconheci a armadilha em que havia caído: Eu havia entrado no modelo de pensamento do Apartheid, pensando que os Africanos eram inferiores e que pilotar um avião era tarefa exclusiva dos homens brancos.”
– Ou seja, ele mesmo se viu repetindo padrões, crenças e modelos mentais passados por gerações e contra os quais ele dedicou sua vida lutando. Dá para imaginar quantos desses estão encravados em nós e que nos direcionam no dia a dia, nas contratações, nas promoções, enfim, nos julgamentos que fazemos a todo instante?
O bom é que o prêmio está aí, para quem tiver a inteligência e o desejo verdadeiro e genuíno para trilhar este caminho. Um caminho começa com a liberdade de sermos quem somos, sem máscaras e levarmos estas personas tão interessantes para trabalhar conosco. Caminho sustentado pela justiça de se criar mecanismos e práticas que promovam a equidade entre as diferenças. E me perdoem a ousadia, este caminho precisa estar alicerçado no amor, que, como definiu Paulo: “… é paciente, é bondoso; o amor não é invejoso, não é arrogante, não se ensoberbece, não é ambicioso, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal sofrido, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” Não dá para buscar uma base melhor para diversidade do que essa. Não acham?
Abraços e até a próxima!